quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Vida de putinha

            nascimento de uma putinha é esperado com muito amor pelos pais, que logo quando constatam, através de um simples ultrassom, a existência de um ser com genitália feminina, desconsideram que ele pode não se identificar com ela. O médico avisa de prontidão: vocês estão esperando por uma linda putinha. O pobre bebê, já destinado ao calvário, posicionado da pior maneira possível na sociedade, nasce roxo, sem dentes e leva algumas palmadas no bumbum enrugado enquanto chora. Só podia ser uma putinha mesmo. Os avós levam o enxoval até ao hospital e fazem questão de vestirem a primeira roupinha na criança: um macaquinho rosa com a frase “putinha da mamãe” estampada no peito. Todos sorriem orgulhosos, mas o papai não deixa de coçar a cabeça com certa preocupação, pensando no futuro ingrato que teria sua filha.
            A caminho de casa, o táxi bagunça-se ao receber putinha, que mama no seio da mãe, a grande putona sem escrúpulos que não tem o menor cuidado ao mostrar partes íntimas frente ao taxista, homem trabalhador que se delicia ao olhar a cena mamífera pelo vidro retrovisor. Por este tempo, até completar seu primeiro aninho, putinha sentia cólicas e chorava, sentia fome e chorava, sentia frio e chorava. Golfava após a maioria das refeições, defecava uma meleca verde, acordava no meio da noite para mamar ou brincar. A coisa que mais gostava e que a fazia dar boas gargalhadas era sentar-se no colo de alguém – e aí poderia ser qualquer pessoa – e balançar-se; assim sentia seu corpo todo tremer. Quando putona começou a oferecer-lhe comidas prontas, putinha recusou-as porque achava que os sabores eram fortes demais, e, dessa forma, cuspia-as por inteiro em cima de sua cadeirinha de refeições. Começou a escalar a tela do cercadinho e a fugir do berço durante as madrugadas: tudo coisa de putinha.
            Na medida em que putinha crescia, descobria muitos deveres a serem cumpridos pelas suas irmãs de gênero e confundia-se com os resultados dos esforços. Vestindo rosa ou azul ou qualquer cor do arco-íris, roupas justas ou largas, saias curtas ou longas, cortando os cabelos curtos ou deixando-os longos, maquiando-se ou preferindo deixar-se natural, namorando ou não, sendo heterossexual ou homossexual ou bissexual ou pansexual ou assexual, permanecendo criança ou tornando-se adulta, trabalhando ou estudando, engravidando ou se protegendo ou abortando, frequentando festas ou bares ou ficando em casa, calçando tênis ou sapatilhas ou chinelos ou sapatos de salto alto ou oxfords ou rasteirinhas ou bota ou descalça: putinha, assim como suas amigas, conhecidas, tias, avós, mãe, primas, cunhadas, noras, sogras, enfim, todas sempre seriam putinhas e nada além de putinhas. Os homens eram reconhecidos por seus largos esforços sociais, econômicos, políticos, filosóficos ou qualquer coisa que pudesse reafirmar o lugar odioso ao qual as putinhas pertenciam. E era por isso que as diziam a importância de construírem-se apoiadas ao macho, matando-as com pequenas doses de alienação.
            Putinha nunca percebeu que dependia dos homens para tudo, inclusive para ir e vir. Putinha agradecia quando passava pela rua e ninguém a abordava. Putinha, em seu leito de morte, sorriu por pensar que nunca havia sido estuprada: pura sorte, afinal, as putas serviam para isso. Putinha ajoelhou-se aos pés da imagem de Nossa Senhora Aparecida reconhecendo o milagre de não ter sido atacada sexualmente pelos gringos europeus que a julgavam mal apenas por ser brasileira, latina, mestiça. Ser homem deveria ser uma benção a ser alcançada na próxima reencarnação.