quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Valentina’s Day*




"A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade ; torna-se estranho para ela; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam sobre sua anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne".
(BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, Vol. II, p. 407, 1949)








            Eu acordei aí eu queria brincar, mas minha mãe não parava de falar que era pra eu tomar meu café porque a gente tem que ficar forte pro resto do dia. Outro dia eu bem tava vendo no filme da sessão da tarde que lá nos Estados Unidos o pessoal come bacon com ovo e com panqueca, só que eles não são fortes não, eles são que nem a gente. Também não dá pra saber, eu nunca briguei com ninguém lá depois do café pra poder falar “nossa como essa pessoa é forte”. Eu acho que o meu nescau é melhor, na propaganda mesmo fala que a gente tem mais energia depois que toma um copão de nescau, mesmo se ele tiver lotado de açúcar que nem o meu tava naquele dia porque eu coloquei escondido. Depois que eu tomei ainda tive que escovar o dente, tinha um que tava bambo, meio solto, mas eu não tirei não porque dói à beça e sangra e eu posso engasgar com o sangue e não parar de sangrar nunca mais, até morrer. Eu fico com medo, sabe, meu pai disse que se a gente não arrancar o dente que tá querendo sair, os outros vão nascer tudo torto e podre e ele vai ter que gastar um dinheirão mandando arrumar. Será que arrumar dói mais do que arrancar agora? Ai não sei mas nem contei pra ninguém naquele dia não, esperei um tempinho pra ver se ele saia sozinho mesmo.

            Aí eu saí pra chamar a Gabi, minha amiga que mora logo do outro lado da rua, a gente podia brincar até na hora do almoço, depois a gente ia pra casa, tomava banho e se encontrava na escolinha pra brincar mais. “Ô Gabi”, eu gritei. Daí ela saiu correndo porque já tava me esperando, trouxe a bola pra gente jogar queimada mas só tinha nós duas a gente ia ter que fazer alguma coisa diferente tipo ver quem deixava a bola cair primeiro. Quem perdesse ia ter que ir lá na casa mal-assombrada que foi abandonada depois que a Senhora Lourdes morreu e deixou tudo que era dela lá dentro. Ninguém nunca que quis entrar no lugar, deus que me livre. Mas a gente combinou assim então assim é que ia ser. Começamos a jogar a bola uma pra outra e tava muito engraçado porque a gente não olhava pro chão nem pro lado e tropeçava e caía mas sempre deixava a bola no ar, a gente quase que morreu de tanto rir uma da outra. Só que daí chegou um moço mais velho, parecia meu pai, sabe, ele tinha uma barba que era igual do moço da televisão e ele tava suando e rindo pra gente. A Gabi viu e perguntou se eu conhecia o moço, eu falei que não, e eu não conhecia mesmo, nunca que tinha visto ele na nossa rua. Aí ele foi chegando perto da gente até que pegou a bola que a gente tava jogando pro alto e acabou com a nossa brincadeira, ficou perguntando qual era nosso nome mas a gente não respondeu. Ele falou que um gato tinha comido nossa língua e eu bem mostrei minha língua pra ele só pra ele ver que eu tinha língua mas não queria era falar com ele. Ele falou “nossa, que língua gostosa”. Eu não entendi nada, só que comecei a ficar com medo, ele tava olhando esquisito, a Gabi me puxou e falou pra gente ir embora mas a gente precisava da bola. A Gabi pediu a bola e o moço falou que não ia dar aquela não, que na casa dele ele tinha um montão de bola legal e que ia dar todas elas pra gente. Ai a gente riu, “duvido, você já é grande, nem brinca mais de bola”, eu falei. “Mas as bolas que eu tenho são pra meninas brincarem, meninas tipo vocês assim, bem pequenininhas”. Sei lá, tava esquisito, a gente preferiu ficar quieta. A Gabi falou que ele podia ficar com as bolas. Quando o vizinho saiu pra botar o lixo pra fora e olhou pra gente, o moço devolveu nossa bola. A gente ficou muito feliz e agradeceu. Ele pediu pra gente virar de costas porque queria ver uma coisa e a gente virou sem pensar. Ele falou que a gente tinha pernas bem gostosas, que nosso shortinho tava chamando ele. Eu não gostei. Comecei a chorar. Ele ficou bravo e falou que eu era uma vadia porque se tava de shortinho na rua e brincando de bola eu tava era querendo dar. Eu fiquei muito triste e fiquei com vergonha da minha perna, puxei a Gabi e entrei pra dentro de casa. Falei pra minha mãe tudo que aconteceu mas ele nem acreditou, eu pedi pra não usar short nunca mais só que tava calor e eu tive que usar, daí pra ninguém olhar eu peguei a faca enquanto minha mãe tomava banho e cortei minha perna toda. Que nojo que eu tinha de mim, credo eu era muito nojenta. 



* O título refere-se ao caso de Valentina, participante do Masterchef Júnior Brasil. Entenda o caso aqui.