sábado, 2 de janeiro de 2016

Subjetiva




Eu queria ser astronauta. Gostava mesmo de olhar para o céu, contar estrelas, tentar decorar os nomes que consultava nas enciclopédias. Falava para os adultos que não me importava em ser pequena porque nas aulas de ciências me diziam que perante o resto do universo, todos nós éramos seres bem insignificantes. Desenhava os diferentes planetas, brincava de zero gravidade. Mas no final das contas tinha de me contentar com pentear o cabelo das bonecas e ouvir da boca de meus pais que meninas se preocupam com cabelos, unhas, corpos. O universo era exclusivamente masculino.
Meu sonho era lutar na guerra. A princípio pode parecer algo tolo, mas para mim significava ser forte tanto quanto meus irmãos. Eu sabia que para guerrear precisávamos de aparatos, inteligência, não tanta força física. O que me alegavam era que jamais conseguiria vencer uma briga com um homem porque eles eram mais fortes e acabariam comigo ‘em dois tempos’. Pois bem, em uma aula de história a professora contou como os soldados guerreavam, como se armavam. Foi então que pensei: se eu aprender a atirar, poderei ser igual a todos eles, digo, a todos os homens que também sabem atirar. Porém, tudo que recebi foram represálias. Diziam que mulheres não eram bem-vindas no exército, que mulheres ‘violentas’ perdem a tal da feminilidade e nunca arranjam maridos. Não, nunca me perguntaram se eu gostaria de me casar um dia. Apenas me mostraram o quanto meu sonho era inviável para uma garota.
Já eu gostava de jogar bola, era atacante do time do bairro. Parecia que havia nascido com o dom, se a bola chegasse em meus pés podiam contar logo com bons dribles e gols. Ninguém ousava ser melhor, ninguém se atrevia a roubar-me a bola. Deitava todos os dias em minha cama e sonhava em me profissionalizar, tinha ídolos que me inspiravam. Só que por essa época eu não me dava conta de que todos eles eram homens, que o mundo do futebol não permitia garotas – ou que pelos menos elas teriam menos oportunidades, seriam menos reconhecidas. Descobri que não poderia sonhar com nada disso quando comecei a ser hostilizada porque meus seios estavam crescendo. Os meninos já não me queriam no time, apontavam aquela suposta fragilidade e colocavam-me em meu ‘devido lugar’. Futebol não era coisa de mulher, afinal.
Eu só queria usar bermudas ao invés de saias. Todas as vezes em que ia visitar minha avó, me sentia muito à vontade para brincar com meus primos e não prestava atenção aos ‘modos’, quer dizer, aos ditos ‘bons modos’. Sentava da maneira mais confortável possível e me distraía quanto às roupas que vestia... acabava mostrando minhas roupas íntimas e levando uns bons tapas de meus pais. Minha única vontade era brincar livremente, mas como menina, minha mãe dizia, eu deveria me preocupar mais com minha imagem. Preocupar mais com meus cabelos, com minhas roupas, com as palavras que saiam de minha boca. Eu simplesmente não poderia ser espontânea em momento algum. Brincadeiras eram coisas permitidas apenas para homens, aparentemente a vida também.
Eu gostaria de sair na rua usando roupas curtas porque sinto calor, gostaria de sair com mais de um cara na mesma noite, pelo menos de vez em quando, porque nem sempre o primeiro que beijo desperta algum desejo maior em mim; gostaria também de poder criar um filho sozinha sem ter que prestar contas à sociedade sobre o paradeiro do pai da criança, isso porque muitas vezes eu o detesto, ou simplesmente não o quero ver, ou qualquer outro motivo; gostaria de poder controlar meu corpo: engravidar quando quero, engordar quando quero, malhar e emagrecer quando quero; gostaria de ficar muito bêbada e voltar em segurança para casa, gostaria de transar somente quando quero muito; gostaria de gozar. Ah! Eu também gostaria de falar um monte de palavrões sem ter que me preocupar com o que vão pensar de mim, sair sem maquiagem, sem pentear os cabelos, sem fazer unha. Essas coisas me fazem perder um tempo digno de investimentos na bolsa de valores.... Eu tenho muitos sonhos, de verdade, e por essas horas estão todos mortos dentro de mim. Descobri que aparentemente a vida não me é negada, mas concretamente sim.